Capítulo 1
Suponho que a primeira coisa que precisam de saber sobre mim é que sou a vilã desta história.
A segunda coisa que precisam de saber é que eu não atirei de propósito aquela bebida ao tipo junto ao bar, como ele está a tentar dizer que fiz. Ele deve ter-me desequilibrado enquanto tentava apalpar o meu rabo. Pelo menos, é essa a minha versão.
(A terceira coisa é que uma dessas duas primeiras coisas não é estritamente verdadeira. Deixo-vos descobrir qual é…)
— Lexie, já falámos sobre isto antes. Não podemos agredir os clientes. Nem mesmo aqueles que bem o merecem. Tu sabes disso.
A Sabine põe as mãos na cintura e lança-me aquele olhar que eu passei a considerar simplesmente como O Olhar. É aproximadamente uma parte exasperação e uma parte resignação, e normalmente significa que ela está prestes a afastar o cabelo da testa e dizer, “Oh, Lexie“, como se fosse a minha mãe prestes a dizer-me que não está zangada, apenas desiludida.
A Sabine é a minha chefe aqui no Joe’s Bar, mas também é a minha colega de casa (Ou “roommate” como dizem aqui na Califórnia. Estes miúdos malucos.), e a minha melhor amiga. Bem, a minha única amiga, na verdade, a não ser que contes a minha mãe, e nem tenho a certeza se a minha mãe contaria a minha mãe neste momento – especialmente considerando que não falo com ela há quase 12 meses. Então, pois. Acho que não sou muito sociável. Que posso eu dizer?
De qualquer forma, a Sabine é australiana, e quando lhe perguntei se o nome dela era suposto ser um reflexo da sua personalidade ensolarada, ela fingiu dar-me um murro na coxa.
Tomei isso como um “não”, então. Parece que a Sabine também não é muito sociável, na verdade. Tenho a certeza que é por isso que nos damos tão bem.
— Juro, Sabine, não fiz isso. Eu nunca faria.
Abro os olhos inocentemente enquanto olho diretamente para ela, a própria imagem da sinceridade.
Isto vai resultar. Sei que vai, porque sou uma mentirosa experiente, tendo vindo a aperfeiçoar as minhas habilidades desde que era criança. Além disso, ninguém consegue resistir aos meus olhos azuis de bebé quando ameaço chorar, como estou a fazer agora. Posso ser a vilã, mas pareço a heroína, toda loira e de olhos azuis, por cima de um narizinho arrebitado e fofo. E isso é o principal, não é? Quando se é bonita, pode-se safar de tudo.
Bem, quase tudo.
Só para ter a certeza que me safo desta, deixo o lábio inferior tremer ligeiramente enquanto baixo os olhos para o chão. Quando os levanto novamente para encontrar os da Sabine, estão cheios de lágrimas – chorar por encomenda tem sido o meu truque de festa desde que era criança – e a minha chefe suspira derrotada, antes de encolher os ombros e entregar-me um tabuleiro de bebidas.
— Oh, Lexie — diz ela, sorrindo para mim apesar da dúvida persistente que posso ver nos seus olhos cor de avelã. — Leva isto para a mesa 12, sim? E tenta não te meteres em sarilhos, Lex. Estou a falar a sério.
Sorrio com satisfação enquanto me afasto.
Lexie, 1; Tipo arrepiante no bar, 0.
Eu ganho.
Sempre ganho.
Exceto quando não ganho, claro.
Houve uma vez em que não ganhei. Apenas uma vez, mas é a razão por que estou aqui, na verdade. Não quero falar sobre isso. É incrível a frequência com que as pessoas perguntam, no entanto. Não sobre como estraguei a minha vida inteira, obviamente; isso seria um começo de conversa bastante estranho, mesmo pelos padrões de L.A. Mas elas perguntam o que me trouxe das Terras Altas da Escócia para Hollywood, e não posso exatamente dizer-lhes a verdade, por isso normalmente limito-me a sorrir docemente e digo que adoro aquela música dos Human League. Sabem, aquela sobre trabalhar como empregada de mesa num bar de cocktails?
(E, ok, o Joe’s não é tanto um ‘bar de cocktails’ quanto é um bar qualquer com chão pegajoso e padrões de higiene questionáveis. Mas ninguém escreve músicas sobre esses bares, pois não?)
As pessoas adoram essa resposta. Não importa que não seja verdade; faz uma boa história, e é tudo o que a maioria das pessoas se importa. Confiem em alguém que sabe.
Mas como eu estava a dizer. Não sou a heroína, e isto não é uma história de amor. Como poderia ser? Sou apenas uma empregada de bar com uma má atitude, e neste momento realmente quero voltar às boas graças da Sabine, por isso ranjo os dentes e conjuro um sorriso enquanto levo o tabuleiro para a mesa junto à janela, lançando um olhar curioso aos ocupantes enquanto o pouso.
São dois: ambos homens, mas de resto tão diferentes quanto possível. Um é mais velho – final dos cinquenta, diria eu – com cabelo grisalho arrumado e um impecável fato azul-marinho, que o meu olho treinado pode dizer que custou mais do que a minha renda deste mês. Um silver fox, como a Sabine lhe chamaria. Eu dava-lhe 7/10, mas só porque não gosto de homens mais velhos. Caso contrário, poderia chegar a um oito.
O outro homem, no entanto, é um sólido três. Boné de basebol enfiado sobre os olhos. Casaco grosso com capuz preto, mesmo que estejam mais de 26 graus lá fora. Calções largos. Chinelos de piscina. Uma daquelas terríveis barbas farfalhudas que os tipos começaram a usar há uns anos atrás, quando de repente toda a gente parecia assassinos com machados.
Não, espera: isso é desnecessariamente rude para os assassinos com machados, não é?
Como se lesse a minha mente, o homem à mesa olha para cima, os seus olhos encontrando os meus com uma intensidade que deveria ser realmente aterrorizante dado que eu acabara de o imaginar num ataque assassino, exceto que… Exceto que os seus olhos são verdes salpicados de dourado, e, mesmo do outro lado da mesa, posso dizer sem dúvida que são os olhos mais bonitos que já vi – e, claro, são emoldurados pelo tipo de pestanas grossas e escuras que são totalmente desperdiçadas nos homens, e que as mulheres pagarão uma fortuna para falsificar. Não compensam a barba e o traje desleixado, obviamente – nenhuns olhos no mundo são assim tão bons, sejamos honestos – mas são suficientes para me fazer parar e mentalmente aumentar a sua pontuação para 3,5. A contragosto, mas ainda assim.
— Está tudo bem por aqui, rapazes? — digo alegremente, desviando deliberadamente o olhar para o forçar a baixar o seu antes que fique ainda mais desconfortável do que já está. — Posso trazer-vos mais alguma coisa?
— Podes trazer-me algo, espertinha. Como um pedido de desculpas por aquela pequena façanha que acabaste de fazer, para começar.
Reviro os olhos enquanto me viro para encarar o tipo do bar, que me seguiu pela sala, o maxilar cerrado de raiva. Há uma grande mancha molhada na sua virilha onde a bebida que eu “derramei” caiu, e, a julgar pela aliança que posso ver no seu dedo, estou a adivinhar que aquela mancha vai ser bastante difícil de explicar quando ele chegar a casa à mulher esta noite.
Pelos vistos, apalpar a empregada de mesa não foi uma ideia assim tão genial, pois não? Quem diria?
— Há algum problema, senhor?
Endireito os ombros, tentando parecer mais alta. Sabe Deus que estou habituada a lidar com cretinos — faz parte do território dos “bares de má fama”, entendes? Mas este está mais zangado do que a maioria, e enquanto ele dá um passo na minha direção, pergunto-me brevemente se devia tentar controlar os meus impulsos de vez em quando — pelo menos no que toca aos clientes.
Aposto que há um programa dos 12 passos para isso. Devia investigar qualquer dia.
— Podes crer que há um problema, sua vaca escocesa estúpida — diz o Bêbado, dando outro passo na minha direção. — E tu sabes muito bem qual é.
Alguns salpicos de saliva aterram na minha bochecha, e faço o meu melhor para não vomitar enquanto levanto a mão para os limpar de forma ostensiva.
Não me pagam o suficiente para aturar esta merda.
O homem está agora mesmo à minha frente. O seu hálito fede a cerveja, e há qualquer coisa presa entre os dentes da frente. Oscilo entre o medo justificado e o desejo totalmente ilógico de o insultar novamente e, antes que consiga decidir para que lado pender, um braço surge de algures atrás de mim e empurra o Bêbado firmemente no peito, fazendo-o cambalear um passo atrás.
— Ei, pára com isso — diz o Sr. 3,5, falando como se esta fosse uma conversa perfeitamente normal para ter com um estranho num bar. — E olha lá essa linguagem, queres? Ninguém quer ouvir essa porcaria.
Ele move-se um pouco mais para perto de mim. Tenho mesmo vontade de olhar à volta e ver o que ele está a fazer, mas não quero perder a reação do Bêbado, por isso fico ali parada, sentindo-me um pouco como a Princesa Leia quando o Luke e o Han finalmente aparecem para a salvar. A diferença é que a Leia assumiu imediatamente o controlo da situação, como a mulher forte e atrevida que é, e eu estou aqui simplesmente parada, sentindo-me um pouco estúpida, na verdade. E também um bocado assustada, se for honesta.
(Ah, e a outra diferença é que o Han Solo não estava a usar chinelos de piscina e um casaco com capuz, obviamente. A carreira do Harrison Ford teria tomado um rumo completamente diferente se tivesse sido assim.)
O Bêbado tropeça para trás, depois avança novamente, encarando o 3,5 como se estivesse pronto para lutar com ele. Atrás do balcão, a Sabine vira-se rapidamente para ver o que se passa, e vejo-a a alcançar o telefone, pronta para chamar o Joel, o segurança. Mas assim que ela o pega, o Bêbado tem uma súbita mudança de ideias.
— Oh — diz ele, as suas sobrancelhas farfalhudas erguendo-se em surpresa enquanto olha do 3,5 para mim, e de volta. — Uau. Desculpa, meu, não percebi.
Observo, confusa, enquanto ele levanta as mãos num gesto de rendição.
— Uau — diz ele novamente, os olhos ainda fixos no 3,5. — Sem ofensa, meu. Vou sair da vossa vista. Posso oferecer-te uma bebida, aliás? Deixa-me oferecer-te uma bebida…
Ele mete a mão no bolso e tira uma carteira, mas o 3,5 continua ali parado atrás de mim, o seu corpo a irradiar calor nas minhas costas.
— Não é preciso. Deixa apenas a senhora em paz, entendido?
O homem atrás de mim não se mexeu desde o contacto inicial com o Bêbado, mas agora afasta-se e volta a sentar-se à mesa, deixando-me a sentir-me estranhamente exposta sem a sua presença reconfortante atrás de mim.
Quem me dera que ele voltasse — chinelos de piscina, barba estranha e tudo.
O Bêbado levanta as mãos novamente antes de andar para trás, até à porta da frente, na qual quase tropeça na sua tentativa de encontrar o caminho enquanto continua a olhar fixamente para o 3,5. Quando a porta finalmente se fecha atrás de mim, a Sabine lança-me um olhar inquiridor, ao qual respondo com um rápido encolher de ombros.
Não fui eu que quase comecei uma luta entre dois dos clientes. Nã-nã.
— Hum, obrigada — digo, virando-me para a mesa, onde o 3,5 e o Raposa Prateada retomaram a sua conversa em voz baixa, a breve altercação já esquecida. — Foi mesmo… decente da sua parte. Quer dizer, eu podia perfeitamente ter lidado com a situação, obviamente, porque sou uma mulher forte e atrevida. Como a Princesa Leia. Mas, sabe, obrigada.
Na verdade, estou a ser sincera, mas não estou muito habituada a falar de forma tão sincera — ou a mencionar aleatoriamente a Princesa Leia — por isso as palavras saem um pouco mais rígidas do que eu pretendia. Coloco o meu sorriso mais brilhante para compensar, e o 3,5 olha para cima a tempo de apanhar o efeito completo.
— De nada, sabe, Princesa Leia — diz ele, permitindo que aqueles olhos luminosos pousem em mim por um segundo. — Odeio cretinos como aquele. Ei — acrescenta, quase como uma reflexão tardia. — És escocesa, não és? Reparei no sotaque.
Aceno com a cabeça, esperando que ele não me vá dizer que é um cinquenta e três avos escocês pelo lado da mãe, ou perguntar-me se conheço a sua tia-avó Jeanie, das Shetland. Recebo muito esse tipo de coisas. O que é que se passa com os americanos e a sua necessidade de serem sempre outra coisa? Porque é que não podem simplesmente ser eles próprios?
Haha, boa, Lexie. Logo tu a falares.
Felizmente, porém, o 3,5 tem outra coisa em mente.
— Podes recomendar-me um uísque? — pergunta ele, fazendo girar o copo com desagrado. — Um melhor do que este, quero eu dizer. Ouvi falar de um novo blend chamado The 39, ou algo assim. Já ouviste falar desse?
Fico ali de boca aberta enquanto o chão do bar se afunda bruscamente debaixo de mim, fazendo-me estender a mão e agarrar a mesa à minha frente para me apoiar.
Posso recomendar-lhe um uísque, com certeza. A minha família tem uma destilaria na Escócia, por isso pode-se dizer que o uísque está no nosso sangue. Literalmente, em alguns casos. É uma das razões pelas quais me dediquei ao trabalho de bar quando me mudei para cá, na verdade; é uma das poucas coisas sobre as quais sei alguma coisa. Às vezes, quando estou a servir bebidas, basta o mais leve aroma de uísque para me transportar de volta a Heather Bay, a ouvir o mar a embater nas rochas da minha pequena casa de campo. E às vezes essa memória é tão dolorosa que é tudo o que posso fazer para não desatar a chorar ali mesmo no meio do bar. O que seria invulgar para mim, porque eu nunca choro. Bem, não a sério, pelo menos.
Por acaso, a marca pela qual o 3,5 está a perguntar – The 39 – também é produzida em Heather Bay, por isso sim, eu já ouvi falar dela. Bem que gostaria de não ter ouvido, porque, de certa forma, o dono dessa marca é a razão pela qual estou aqui em L.A., a servir cerveja e a atirar bebidas aos clientes, em vez de estar em casa, onde… bem, onde estaria a fazer praticamente a mesma coisa, na verdade, só que para o negócio da minha mãe e não para o de outra pessoa. E embora seja tudo culpa minha, e eu goste daqui, às vezes gostava que fosse exatamente isso que estivesse a fazer.
(Não a parte de atirar bebidas, claro. Raramente desejo estar a fazer isso.)
Mas esta é a minha penitência. Estar aqui é o meu castigo pelo que fiz em casa, e é por isso que, depois de um segundo para me recompor desta colisão inesperada entre a minha vida antiga e a nova, endireito-me novamente e olho o 3,5 nos olhos, sorrindo como se o meu coração não tivesse acabado de ser arrancado do peito, e ignorando completamente a dor incómoda no estômago que começou assim que ele mencionou aquele maldito uísque.
— Lamento, senhor, nunca ouvi falar disso — digo eu, encolhendo os ombros em tom de desculpa, enquanto pego no copo dele, agora vazio. — Suponho que não deva ser grande coisa.
Ah pois, essa é a outra coisa que precisam de saber sobre mim e a minha vida aqui: é tudo falso. Tudo em L.A. é falso – desde o par de mamas impressionante da mulher no canto do bar, até à mentira que acabei de contar ao homem à minha frente. E isso está bem para mim, a sério, porque se nada disto é real, significa que pode ser o que eu quiser que seja. Eu posso ser o que eu quiser ser.
E é exatamente por isso que gosto disto.